Aldeia Utopia

Leo de Sá Fernandes
17 min readJul 2, 2024

Posso afirmar, sem medo de ser vulgar ou do exagero, que foi o Baba Gil quem me tirou da merda. Tinha acabado um casamento de doze anos, ainda estava lidando com a sensação de vazio, o apartamento todo inabitado, quando também tomei outro pé na bunda, o tão temido lay off. Na reta perigosa para os cinquenta — eu poderia dizer, literalmente nos quarenta e cinco pro segundo tempo — vi minha vida ruir. Passei uma semana de cueca e gravata, vagando pelo apartamento apertado, vendo a barba crescer diante do espelho e na mão direita o copo de uísque esvaziar e encher, esvaziar e encher… Minha vida tinha chegado ao fim no meio. Sem motivação, sem amor, sem ter no que acreditar. É nessas horas que a gente vê quem é amigo de verdade: Peralta, Peraltinha dos tempos da escola, esse aí realmente é do peito! Tocou lá em casa, me mandou tomar banho, fez uma macarronada pra mim (eu não comia há dias nada além de pizza e Ifood), e quando eu ofereci um trago, ele me disse que já não bebia mais. Eu estranhei, “quem te viu, quem te vê, hein”, e foi então que ele falou, na maior serenidade: “meu caro, você já ouviu falar do Baba Gil? Se nunca ouviu, você precisa me deixar te apresentar o cara que mudou minha vida!”.

Uma semana depois, eu estava no banco de carona do carro do Peralta a caminho da Aldeia Utopia. O lugar ficava bem isolado numa serra, duzentos quilômetros da capital, e eu estava numa ressaca da porra. Na noite anterior eu tinha tomado todas, tinha até cheirado pó (coisa que, francamente, eu nunca tinha feito antes). Minhas filhas não queriam falar comigo, e eu tinha recebido uma recusa feia numa entrevista (“o seu currículo é muito bom, mas adotamos uma política de diversidade na nossa empresa e o senhor não dá match com o perfil”). Lá pelas tantas, o coração palpitando, achei que ia morrer, liguei para o Peralta e finalmente pedi pela redenção: “me leva, meu chapa, me leva para o tal do Baba Gil, eu tô aceitando qualquer coisa!”. O meu camarada não falou nada sobre os xingamentos e as ofensas que eu tinha proferido na semana anterior: ele simplesmente pegou o carro e veio até mim no meio da madrugada, me fez arrumar as malas, me enfiou debaixo do chuveiro gelado, esperou a bad trip passar, e então partimos pra Aldeia Utopia, o lugar onde, segundo ele, se encontrava o portal para a minha nova vida.

Se era ou não verdade, eu não sabia, mas que de fato foi inspirador o primeiro vislumbre, isso não se podia negar. No alvorecer, o lugar estava maravilhoso, uma paz, uma tranquilidade: visto assim, de fora, aquela porção de construções espalhadas por uma fazenda imensa, todas com formatos geodésicos e tamanhos distintos. Por entre as construções, canteiros de flores eram trabalhados por algumas pessoas distantes umas das outras. “Estão curando”, foi o que me explicou Peralta, sem eu entender muito bem do que ou de que modo eles “curavam”. Eu não fazia ideia do caminho até ali porque, depois de pegar uma estrada de terra no meio da rodovia, ficamos pelo menos mais uma hora até chegar à Aldeia Utopia. Não parecia haver nada ao redor, além de longas planícies gramadas que se perdiam no horizonte. Era como se fosse um território à parte da realidade. Logo que saímos do carro, foi Marli quem nos recebeu, dando especial atenção a mim com suas boas-vindas entusiasmadas: mais tarde eu viria a compreender quem era Marli, essa grande figura que se tornou uma irmã, uma espécie de faz-tudo na Aldeia Utopia, braço direito do próprio Baba Gil. Era uma mulher simpática, serena, séria e sem nenhuma vaidade: usava sempre os cabelos escuros presos num rabo de cavalo na altura da nuca e a camiseta lilás.

Depois de me instalar devidamente em um dos quartos do alojamento, e ter vestido o uniforme — a mesma camiseta lilás de Marli e a calça de moletom cinza — foi Peralta quem me guiou até o salão do refeitório, ele mesmo também devidamente trajado. No amplo espaço aberto, preenchido por mesas e buffets de self-service, talvez umas cem pessoas circulavam, se serviam ou comiam em pequenos grupos, conversando de cabeça baixa. O ambiente era preenchido por uma sonoridade de floresta e uma aura de calma e tranquilidade. Nos servimos da comida vegana, um tanto insossa e, quando nos sentamos, Peralta começou a me passar o quadro geral:

— Tá vendo aquele ali? É o CEO da Starship, manja? Dos aplicativos? E aquela senhora ali, de cabelo chanel, é uma executiva do Google, meu caro. Quando eu vim aqui pela primeira vez, o Luciano Huck também estava. E mês passado foi a Anitta quem veio fazer a vivência…

Mais tarde, os neófitos foram todos convocados para uma primeira sessão de apresentação. Pela primeira vez, então, me vi sem a guiança de Peralta: estava por conta, no meio daquele bando de fanáticos, e já começava a me arrepender quando o líder do workshop, um moleque com metade da minha idade e ar de gerente de TI, explicava para mim e para os outro oito recém-chegados as regras da Aldeia Utopia: nada de álcool, nada de drogas, de tabaco, nem de sexo entre os internos. Bem, com os recém-chegados eu não iria mesmo querer sexo, ainda pensei, mas ainda assim eles me geravam qualquer empatia: eram homens e mulheres próximos da minha idade, caras frustradas, ar de divórcio, nítido sobrepeso… Depois de passadas as regras, o líder-TI-jovem pediu que a gente se apresentasse e falasse o que nos havia trazido até ali: entre os depoimentos, choveram relatos de falta de sentido na vida, busca por autoconhecimento, desejo de alcançar sua melhor versão, etc.

Quando chegou a minha vez, entretanto, eu não sabia o que dizer. Eles ficaram me olhando, o líder sobretudo, e eu simplesmente não tinha como responder. “Não sei”, disse, “sinceramente não sei… Na verdade, um amigo meu que me trouxe, e eu vim…”. O líder-TI-jovem me encarou por um tempo, entre sério e surpreso, e depois, sorriu:

— Irmão, talvez você ainda não esteja pronto para a cura que nós temos pra te oferecer, então… Você pode aguardar aqui até encontrar a resposta. Os outros, podem me acompanhar. Vamos deixar nosso irmão refletir.

Todos saíram e eu permaneci lá, sozinho, sentado no meio da sala, um pouco envergonhado talvez. Fiquei por uns minutos olhando pra frente, sem entender o que fazer, nem como me portar, tampouco se aquilo era sério ou uma espécie de pegadinha. Pensamentos escolares me vieram à cabeça. Tinha a sutil sensação de estar sendo vigiado. Depois de um tempo, me levantei e andei pela sala. Nada. Estava sozinho, e sem câmeras aparentes. A sala tinha um formato hexagonal, como a maior parte dos outros ambientes da Aldeia Utopia. Procurei a porta de correr em uma das paredes, abri, e resolvi sair — mas, para minha surpresa, caí em outra sala do mesmo formato, contígua à primeira. Examinei o ambiente: era igual, o mesmo espaço hexagonal, a mesma saída por uma porta de correr. Alcancei-a, por sua vez, para confirmar minha suspeita: e cai novamente em uma sala semelhante. Precisei repetir o procedimento algumas vezes para aceitar que estava preso em uma espécie de labirinto, me dar por vencido, depois xingar, depois gritar, clamar por socorro, ser ignorado, me recolher ao chão coberto por um tatame acolchoado, controlar a minha ansiedade através da respiração, e, finalmente, cair em prantos.

Fui acordado na manhã seguinte pelo líder, e nem me envergonhei de estar em posição fetal. Quando ele me perguntou se eu havia encontrado a resposta, o motivo pelo qual eu estava ali, sem refletir muito, com a voz ainda rouca de sono, disse a primeira coisa que me veio à cabeça:

— Para encontrar a saída deste labirinto…

O líder sorriu, consentiu e me abraçou. Então me ergueu e me conduziu até uma das paredes da sala, onde havia uma outra porta de correr: só então me dei conta de que havia mais de uma porta em cada sala. E, assim que ele a fez deslizar, dei de cara com os companheiros neófitos da noite anterior a me felicitar, seguidos de Peralta, Peraltinha dos tempos de infância, meu amigo do peito, e depois a Marli, todos com seus uniformes liláses, me abraçando e me felicitando, e então ele, pela primeira vez ele em pessoa, e dessa imagem carismática eu nunca vou me esquecer: seus cabelos lisos e longos, as mechas grisalhas, o sorriso franco e aberto, os braços estendidos sem qualquer preconceito, em carne e osso e emanando um aroma de lavanda, o próprio Baba Gil.

*

Havia muita dor em mim. Mas havia também muita resiliência, e uma potência enorme de regeneração e reinvenção — era isso que eu viria a aprender nos dias seguintes dentro da Aldeia Utopia. Para isso, portanto, para esse aprendizado, eu precisava antes de tudo “cuidar a cura”, como o Baba Gil nos ensinava. Ao longo daquela semana, junto aos outros neófitos, comecei a trabalhar nos canteiros das flores liláses que se espalhavam por toda a extensão da fazenda. “Cuidar a cura” ou simplesmente “curar”, naqueles moldes, era sinônimo de fazer com que as plantas florescessem. Mas, diferente do que eu pensava inicialmente, não era de uma metáfora que se tratava. Em minha primeira sessão com o próprio Baba Gil, eu e o grupo de neófitos ouvimos da boca do mestre que aquelas flores eram realmente curativas, isto é, possuíam um princípio-ativo balsâmico, que a nós, no final de nosso ciclo, seria dada a oportunidade de experimentar. Mas antes — e ao fim da primeira semana o próprio Baba Gil nos fez a pergunta — seria preciso entender: do que realmente a gente precisava se curar?

Mais uma vez eu não soube responder à pergunta de bate e pronto, e mais uma vez, fui confinado à sala na qual nós estávamos, abandonado pelo Baba e pelo resto do grupo que parecia saber na ponta da língua os seus males e suas dores. Tentei manter a calma naquela noite mas a verdade é que até aquele momento na minha vida eu era uma pessoa muito irritada. Depois de meia hora buscando estipular a resposta certa, gritando em alto e bom som hipóteses falsas pra me livrar daquela tarefa desgastante, fui até as paredes da sala na esperança de encontrar as portas de correr, mas ali parecia que nenhuma delas funcionava. Então eu entendi, já calejado da primeira experiência, que não teria jeito, eu precisaria encontrar a resposta de verdade. Só não previ que, dessa vez, fosse demorar tanto.

Passei três noites e três dias ali, sem comer, sem beber água, sem ir ao banheiro…. Em algum momento, acreditei que tudo aquilo fosse um sonho, o Baba Gil, Peralta, a Aldeia Utopia. Depois, tive certeza da realidade, mas comecei a suspeitar que todos tinham me abandonado. E, por fim, tive a certeza de que não era uma suspeita: todos realmente tinham me abandonado, minha esposa, minhas filhas, meus pais… Os meus ex-chefes, meus subordinados… Meus colegas de trabalho. Todos queriam se ver livres de mim. Eu, para o mundo, não fazia a menor falta…

E quando, ao final do terceiro dia, a porta se abriu e eu vi a imagem iluminada do Baba Gil com seu sorriso amoroso e seus braços abertos vindo em minha direção, eu sequer precisei que ele repetisse a pergunta. Fraco e com a voz embargada de um misto de choro e sono, raiva e fome, sede e esperança, eu afirmei de bom grado:

— Eu preciso me curar do medo da solidão… Da ambição do controle… Do desejo de aceitação… Do intenção de ser amado…

— Então venha comigo, irmão, que eu vou te ajudar a se curar de tudo isso. Você está pronto para adentrar o próximo ciclo da sua jornada!

*

O Baba Gil me guiou até a ala oeste da fazenda, onde os outros neófitos já desempenhavam as práticas do próximo ciclo dentro de uma geodésica que se parecia com uma estufa. “Colher a cura”, foi o que o Baba me explicou, e dessa vez, as plantas já grandes, deveríamos arrancar os botões das flores e depositá-los dentro de grandes tonéis metálicos que se encontravam ao final de cada um dos corredores. Mas tal atividade deveria ser executada com respeito, ele me orientou, pedindo permissão a cada flor que eu extirpasse do caule. A paciência era uma virtude do processo, eu logo entendi. E por isso, desempenhei aquela tarefa com muita dedicação ao longo dos dias que se seguiram, sorvendo o aroma de lavanda que cada flor emanava ao ser arrancada com o próprio consentimento — o perfume, depois eu iria identificar, que o próprio Baba Gil emanava.

A rotina tornou-se uma meditação cotidiana, estranhamente completa: eu acordava cedo, seguia para o refeitório, encontrava Peralta ou algum dos neófitos e comíamos em silêncio. Depois, ouvia a exposição matinal do Baba Gil, que era destinada a todos os internos da Aldeia Utopia, independente de seu estágio no ciclo. À noite, éramos convidados para o sarau. E, numa dessas ocasiões, tive finalmente a oportunidade de ser apresentado por Peralta ao CEO da Starship, sabe?, dos aplicativos?, empresa esta da qual, por sinal, eu me tornei atualmente um dos colaboradores…

Um tempo depois, o Baba tocou em meu ombro enquanto eu me distraía pedindo a permissão para uma das flores, e me disse que eu já estava apto para iniciar os treinos físicos. “Primeiro trabalhar a mente, depois o corpo, e no fim, corpo e mente serão o uno”, ele me disse. No dia seguinte, compareci ao treino pela primeira vez: reparei que nem todos os neófitos estavam ali, o que me fez sentir uma espécie tímida de superioridade e, ao mesmo tempo, um contentamento apaziguado que me fez sorrir e calar o pensamento: “cada um com seu processo”, disse a mim mesmo. E lá na frente estava ele, o Baba, e só então me dei conta de como ele era forte, e esbelto, um corpo desenhado na medida certa pelo esforço adequado, desempenhando com rigor e beleza os movimentos calistênicos que nos ensinava. Devo admitir que tinha dificuldade, sim, porque nunca fui chegado aos exercícios físicos: mas o Baba, mesmo de longe, sentiu minha inadequação, e um tempo depois veio até mim me auxiliar. Foi ali que eu senti que ele enxergava em mim um dileto entre os irmãos e irmãs.

Ao fim do segundo ciclo, eu já não era mais o mesmo derrotado que havia entrado na Aldeia Utopia. Eu ainda não conseguia pensar no que me aguardava quando eu voltasse, na vida lá fora. Aqui eu tinha encontrado colegas, irmãos e irmãs, um guia, uma família, e acima de tudo, um propósito. O medo do retorno, contudo, ainda existia: o medo da solidão do apartamento, o medo de falhar como pai, o medo de nunca mais encontrar alguém ou de ser incapaz de ser reinserido no mercado. E foi com esse medo à espreita, um pouco mais discreto mas se fazendo presente, que fui ouvir o sermão do Baba Gil aos neófitos, em um dos pontos mais afastados da Aldeia Utopia, lá onde o terreno era quase todo dominado pelas plantações da florzinha lilás. Fomos guiados por Marli até o local e lá estava ele, sentado em posição de lótus, o seu bonito perfil delineado pelo crepúsculo…

— Irmãos e irmãs, vocês tem desempenhado um caminho exemplar na busca do autoconhecimento, no abandono das velhas tendências… Eu estou muito orgulhoso de vocês. O dia do batismo se aproxima e, com ele, a cura final lhes será dada… Mas, cientes do que vocês vieram fazer aqui, tendo cuidado da cura, e com plena consciência das suas próximas dores, irmãos, agora que vocês colheram a cura, que vocês tem a cura em mãos, me digam… O que fazer com ela?

— Curar! Me curar!

— Aplicar a cura!

— Usar a cura!

Levei um susto com o imediatismo dos outros. Eu já tremia na base, prevendo o óbvio que iria mais uma vez acontecer: sozinho, humilhado, a minha ignorância exposta, lá ia eu novamente ter que passar pelo processo árduo da descoberta da resposta enigmática. Mas, daquela vez, ao contrário, nenhum dos outros neófitos parecia ter descoberto de imediato a sua própria verdade. O Baba Gil saiu de sua posição, caminhou até nós, e sorrindo, olhando em nossos olhos, disse: “eu aguardo vocês do outro lado”. E se distanciou.

Em seguida, fomos todos conduzidos por Marli para uma região mais afastada da fazenda, e chegamos a uma geodésica cuja superfície era coberta por um tom de lilás notadamente mais escuro. Em cada uma das faces do grande polígono, havia uma porta diferente, diante das quais Marli nos instruiu que a gente se posicionasse e despisse o uniforme. No começo não entendi muito bem. “Despir? Como assim?”, e fui vendo alguns dos outros, mais conformados, talvez mais desapegados, ou só mais exibicionistas, tirando a roupa. Marli permaneceu na minha frente, esperando que eu lhe entregasse o uniforme, e inclusive a cueca. Eu me vi completamente nu, aguardando a minha vez de entrar.

Dentro daquela geodésica estava tudo um breu. Era impossível distinguir o meu corpo dos arredores, tampouco ver onde e como estavam os outros. Eu sabia o que devia fazer: sentar e meditar. Ouvi de longe as respirações que, no silêncio absoluto, ganhavam o ambiente. Passou um tempo até que algum de nós se movesse: pude sentir o deslocamento do ar, pequenos ruídos dos pés pelo chão. Alguém espirrou, outro alguém tossiu mais longe. Apesar de não enxergar os limites entre mim, os outros e o espaço, eu ainda era capaz de distinguir a minha consciência. O que fazer com a cura? Era essa a pergunta do Baba Gil. Mais ruídos ao meu redor. Pensei em falar alguma coisa, mas fiquei com medo de interromper a meditação dos outros. Um dos ruídos, entretanto, parecia se converter em gemidos. Não era possível! Estavam… Trepando? Se masturbando? Fiquei com medo de alguém tentasse alguma coisa comigo. Sem ver quem era, eu hein… Imediatamente levei minhas mãos ao meu sexo na tentativa de protegê-lo. Mas logo percebi que o gemido que eu ouvia ao fundo era na verdade alguém chorando… Eu e meus julgamentos… Minhas censuras…

Passei a noite naquela posição, acordado. Não sei dizer ao certo quando nem como dormi. Quando ganhei consciência, a escuridão ainda estava lá. Não senti fome nem frio, de imediato, mas ao fim do segundo dia, nu, no escuro, eu já começava a perceber as cobranças do corpo. O que fazer com a cura, afinal? Eu estava o tempo todo em alerta. Fui sentindo uma dor de cabeça tomar conta de mim, junto da fome e do mal estar. Os movimentos ao meu redor, vindos dos outros corpos, eram igualmente sutis e aterrorizantes. No terceiro dia em que estávamos naquela mesma situação, comecei a achar que as pessoas fossem enlouquecer. Eu ouvia choros, gemidos, e a julgar pelo odor terrível que pairava no ambiente, estávamos fazendo nossas necessidades em qualquer lugar. Eu mesmo me vi na situação humilhante de ter que encontrar um canto para me aliviar, pois já não podia mais suportar.

No quarto dia, o cheiro nauseabundo era tanto que os ruídos agora eram de vômito. Em menos de uma semana naquela situação, já tínhamos perdido toda a nossa civilidade. E, no entanto, o que fazer com a cura? No quinto dia duas pessoas que estavam mais distantes, uma contaminada pela outra, começaram a gritar e pedir desesperadamente para sair. Tinham desistido. Um tempo depois, seus gritos cessaram abruptamente. Acho que foram ouvidas. Fiquei tentado a fazer o mesmo. Mas eu queria a resposta. Eu precisava descobrir o que eu ainda tinha para aprender sobre o que fazer com a cura…

No sétimo dia sem comer, sem beber água, sem ver a luz do sol, sem ver a mim mesmo ou aos outros, sem conseguir dormir, acostumado com o cheiro da merda e do mijo, alguém entre nós disse que estava passando mal, que sentia que iria morrer. “Me ajudem…”, disse uma voz fraca no meio da escuridão, e tudo que eu pude fazer foi me guiar por aquele rastro de som até encontrar um corpo que agonizava num outro ponto. As outras pessoas também tinham vindo. E de repente estávamos todos abraçados. “Lembre-se de respirar…”, disse alguém. E juntos, começamos a respirar, e o pânico foi se dissolvendo. “A gente tá na merda, literalmente”, alguém soltou, e então todo mundo riu. E as risadas foram se tornando gargalhadas. Estávamos juntos. Ninguém solta a mão de ninguém. E foi então que as portas se abriram, e a luz entrou, e nos vimos uns aos outros quase como bichos, sujos, raquíticos. E fomos nos encaminhando em direção àquela luz que, de tão inusitada, quase nos cegava.

E fomos sendo guiados para fora da sala, e meio sem ver, sem entender nada do que acontecia, jatos de água limpa e fresca nos atingiam o corpo, assim como a luz do sol, assim como a brisa do ar, e nunca a atmosfera pareceu tão valiosa, tão rica, tão glorificante. Ficamos ali, sendo lavados pelos irmãos e irmãs da Aldeia Utopia, e então aos poucos cada um de nós foi sendo encontrado por um padrinho ou madrinha, que o retirava do banho e o entregava um roupão lilás que se parecia com uma túnica atoalhada. O meu foi entregue por Peralta, meu amigo do peito, meu irmão. Eu ainda estava sem entender direito o que se passava. Conseguia distinguir a área livre ao meu redor, alguns tatames espalhados pelo chão; os outros neófitos resgatados com seus padrinhos e madrinhas; irmãos e irmãs observando a cena, aplaudindo; Marli distribuindo cestas para os neófitos e, ao longe, ele, com seu sorriso terno, sua luz própria, olhando para cada um de nós como se soubesse que nós não iríamos decepcioná-lo: o Baba Gil. Quando chegou a minha vez de receber a cesta das mãos de Marli, eu mal podia me movimentar direito: meu corpo todo doía, meus membros tremiam, meus sentidos estavam confusos. O meu irmão Peralta alcançou a cesta e, em seguida, me perguntou:

— O que fazer com a cura, meu irmão?

A resposta veio com a simplicidade de gesto involuntário

— É preciso compartilhar a cura…

Peralta pegou um frasco de dentro da cesta, abriu, tirou de dentro uma pílula pequena e levemente arroxeada, e me oferecendo, disse:

— Dê boas vindas a sua nova vida!

*

O fim da dor. O reino absoluto do bem-estar. Enquanto eu sentia a onda energética e revitalizante se espalhar pelo meu corpo, Peralta, agora meu padrinho na Aldeia Utopia, me contava a sua história: como havia ido parar ali, o estado em que estava antes de conhecer a palavra do Baba Gil… Seus primeiros dias; sua dificuldade na busca das respostas certas; as muitas vezes em que pensou em desistir; os momentos em que a iluminação bateu; o seu batismo; e sua compreensão de que a cura precisava chegar a cada vez mais pessoas. Era assim, portanto, que os irmãos e irmãs mais antigos apadrinhavam os neófitos: relatando a sua própria jornada de descoberta, partilhando e curando, as histórias, as dores, as dúvidas…

Eu me sentia plenamente íntegro e conectado à todas e a todos, ao Todo. Meu corpo era uma extensão da grande força universal. Observava os meus colegas neófitos enquanto a tarde caía e uma fogueira era acesa por Marli e por alguns irmãos mais experientes. Comíamos as frutas, os pães e os grãos que estavam em nossas cestas e também presentes em uma grande mesa ao fundo. Mas eu mesmo não sentia mais fome. Nem dor, nem constrangimento, nem amarras. Eu precisava somente de uma coisa: agradecê-lo. Precisava olhar nos olhos dele, pegar em suas mãos, sentir o seu perfume de lavanda e agradecê-lo por todos os ensinamentos que a Aldeia Utopia me havia proporcionado ao longo daquele mês. Quando alcancei a presença iluminada do Baba Gil, minha primeira fala foi inevitavelmente uma pergunta:

— Baba… Eu não poderia ter tomado a cura logo no primeiro dia?

— Irmão… Não pergunte a mim, pergunte a ti. Você é teu mestre. E agora, você já conhece a resposta…

E eu conhecia. Sim, eu sabia. Mas se te conto tudo isso agora é pra que você entenda que eu também tive esse mesmo pensamento que te acomete. E o que digo, agora, na condição de teu padrinho, a ti, você que está com dores, que está exausto; você que está cansado de todos os desafios, mas que chegou até aqui; você que foi e tem sido tão resiliente: a cura é acima de tudo uma conquista. É preciso fazer a travessia da dor para que a cura possa fazer sentido. Entende? E é por isso que eu te narro a minha história aqui, na Aldeia Utopia, para que você entenda que somos iguais, que eu também uma vez estive em seu lugar. E agora estou aqui, para te guiar. Por isso, abra a boca…

Eis aqui o fim da dor. Abra a boca e dê boas vindas a sua nova vida!

Ei, você chegou até o fim? Esse conto é parte de uma continuação do meu livro “Panaceia parafernália”. Como ele ainda está em processo, se você puder deixar seu comentário e alguns claps me ajuda muito a saber o que ainda precisa ser melhorado! Obrigado!

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Leo de Sá Fernandes

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